Ana Marta Lobosque

matraga homenagens fevereiro 7, 2018

CANTIGA BRAVA PARA MARCUS VINICIUS

O terreiro lá de casa/Não se varre com vassoura
Vale com ponta de faca/Bala de metralhadora

Atenção, tod@s os trabalhadores de Saúde Mental que, dia após dia, enfrentam a exclusão e geram liberdade. A postos, tod@s os bravos militantes do movimento da luta antimanicomial. Presentes, todas as brigadas em defesa dos direitos de cidadania. Estejam aqui tod@s os insubmissos, tod@s os que não se tornaram corpos dóceis e úteis nas engrenagens do capital. Venham agora, atrevid@slouc@s do mundo inteiro. Cheguem mais perto, todos aqueles que buscam a paz sem temer a guerra. Apressem-se, tod@s os apaixonados, tod@s os amantes, tod@s os desejantes – tod@s os sabedores de que a implacável pureza do desejo exige o enfrentamento e o combate. Aproximem-se, tod@s aqueles que não cedem nem recuam na sua causa; tod@s os diferentes, tod@s os esquisitos, tod@s os únicos. É hora de nos despedirmos daquele que tão ousadamente tomava a palavra – e, ao tomá-la de seus donos de sempre, a fazia nossa. É hora de nos despedirmos do mestre e aprendiz, companheiro e capitão, amigo e irmão profundamente amado, Marcus Vinicius de Oliveira.

A roupa lá de casa/Não se lava com sabão
Lava com ponta de sabre /E com bala de canhão

Marcus era, essencialmente, um homem de guerra. Não por acaso, pois, se autonomeou como Marcus Matraga. O que terá atraído Marcus no personagem de Guimarães Rosa? Augusto Matraga era o homem outrora turbulento e bravio que, numa longa ascese, esforçou-se em dominar a própria violência – para voltá-la, no fim da vida, contra o guerreiro Joãozinho Bem-Bem, ao vê-lo humilhar um pobre velho. Assim Rosa descreve Matraga, ao preparar-se apara a briga derradeira: ?Os olhos cresciam, todo ele crescia, como um touro que acha os vaqueiros excessivamente abundantes e cisma de ficar sozinho no meio do curral…..? E este homem, que durante anos e anos nunca mais tocara arma nenhuma, mata seu adversário e é morto por ele, sem temor algum: baleado, ?tinha fogo nos olhos de gato-do-mato, e o busto, especado, não vergava para o chão?. E assim cumpriu a promessa que se fizera: ?P?ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!..
Não, Marcus não era igual a Nhô Augusto. Aliás, Marcus não era igual a ninguém, tão diferente de tod@s era, tão ele mesmo em cada poro e em cada gesto – radicalmente único, você, Marcus Vinicius! O que talvez te tenha levado a escolher o apelido de Matraga terá sido algo que sempre bem soube, ao longo de toda uma vida em defesa do que há de mais belo e precioso na cultura: a diversidade fecunda, a palavra justa, o convívio amigo, o generoso dom. Descrente da barbárie, amante da delicadeza, você bem apreendia o mal estar da civilização: este mal estar que nos destrói, quando acreditamos erroneamente que é possível e desejável extirpar a violência inata à vida mesma. A violência não se extirpa: é preciso usá-la, tomar-lhe a força, fazendo dela uma outra coisa. É preciso ensiná-la a domar-se a si mesma, para que se transforme em arma poderosa contra a covardia, a ganância, a opressão.
Contra a covardia, contra a ganância, contra a opressão: em alegre e ardente peleja, Marcus Vinicius, fechamos centenas de hospícios, abrimos milhares de espaços; mudamos ordens e leis, criamos vidas e mundos, neste combativo movimento, plural, libertário, da luta antimanicomial brasileira. Movimento único, Marcus. Como você.

Te entrega, Corisco/Eu não me entrego não
Eu não sou passarinho/Pra viver numa prisão

Quantos pássaros soltamos das gaiolas ao longo de todos estes anos, Marcus Vinicius! Quantos e quantos deles voaram, felizes e audazes, céu e mundo a fora!
Felizes e audazes, não só peleamos, mas brincamos e rimos ao seu lado ? pois um vero homem de guerra bem aprecia os amenos prazeres da paz. A cerveja gelada, a boa cachaça, o sabor da comida, o calor da amizade, os gestos do amor. Também sentiremos saudade, pura e simples, da sua companhia. Saudade enorme, Marcus Vinicius.

Te entrega, corisco,/Eu não me entrego não
Não me entrego a tenente, /Não me entrego a capitão
Eu só me entrego à morte /De parabelum na mão.

Brusca partida, esta. A violência, estúpida e crua, abateu-se sobre a vida pujante que era a sua. Mas talvez – quem sabe, pois aquilo que poderia ter sido é o que não sabemos jamais…- talvez, enfim, você tivesse mesmo que morrer brigando. Numa cilada, sim, traiçoeira e odiosa. Mas, ainda assim, enganado, pego de surpresa, covardemente assassinado, você não foi, como não foi jamais, nem vítima nem fraco. Você sempre correu os riscos e pagou pra ver.A hombridade era o seu parabelum. Você parte viril e inteiro, Marcus Matraga. Adeus.