De suplente a presidente: meus dias com Ana Bock
Ana M. B. Bock
Este era o título do livro que Marcus Vinicius me dizia que escreveria, fazendo referência aos
dias que esteve comigo à frente do Conselho Federal de Psicologia. Jamais eu poderia imaginar
que quem escreveria esta história seria eu.
1989. Eu presidia a Federação Nacional dos Psicólogos, que à época reunia uma porção de
Sindicatos espalhados por vários estados do país. Apesar de entidades com muitas dificuldades
financeiras e políticas, sabíamos fazer certo barulho político em uma época tão importante.
Havíamos aprovado a Constituição Cidadã em 1988. Recebi, no início daquele ano um convite
do Conselho Federal de Psicologia, presidido à época por Yvonne Khouri, para uma reunião
conjunta da ala sindical e da profissional, na busca da construção de caminhos comuns pelos
dois segmentos, fortalecendo a organização da psicologia no país. Ao lado de Yvonne, como
proponente da reunião e de um futuro Congresso Unificado, estava um jovem com seus 31
anos, Marcus Vinicius. De voz forte, ousado nas suas propostas, firme e capaz de uma
construção política transformadora, convincente e capaz de argumentações complexas e
críticas, Marcus coordenou, ao lado de Ricardo Moretzsohn, uma reunião de vários sindicatos
de psicólogos de todo país. Estavam lá companheirinhos que continuariam conosco: Marcos
Ferreira e Lumena Furtado pelo Sindicato de Brasília; Chico Viana pelo Sindicato de Minas
Gerais; Odair Furtado e Wanda Junqueira pelo Sindicato de São Paulo. A reunião foi tensa, mas
resultou na aprovação da proposta apresentada pelo CFP, de realização de um Congresso
Unificado entre os dois segmentos, ainda naquele ano de 1989. E assim foi. O Congresso foi
tenso, mantendo-nos como pacificadores de relações belicosas entre as entidades. Apenas
uma decisão foi tomada: trabalharmos todos pelo fim do corporativismo em nossas entidades.
Os Conselhos de Psicologia levaram muito a sério a decisão e em 1994 montaram um Processo
Constituinte, onde o debate central era a reformulação da entidade (CFP e CRPs) e da Lei 5766
que regulamentava (e ainda regulamenta) o Sistema Conselhos de Psicologia. Havia uma
unanimidade: práticas e princípios democráticos deveriam guiar a reformulação. Fomos então
capazes, como constituintes, de reformular as eleições para os CRPs e CFP, a natureza
federativa do CFP, as instâncias de decisão; foram criados os Congressos Nacionais da
Psicologia (CNPs), como instância máxima de decisão com a participação da categoria, a
Assembléia de Políticas, Administração e Finanças da autarquia; enfim, naquele 1994, um
conjunto de psicólogos e psicólogas, a partir de um debate tenso e acalorado, criavam um
novo conselho para a profissão. Marcus Vinicius era parte fundamental deste coletivo; tinha
clareza da direção política que estava sendo dada àquela tarefa ousada; tinha clareza e
defendia os princípios democráticos que passavam a guiar nossas construções e ações; tinha
garra para defender com argumentos fundamentados e ousados a nova formulação; coragem
na disputa e, acima de tudo, uma honestidade política que me convencia da ideia de seguir
neste trajeto, acompanhando-o.
Em 1996, eu voltaria à cena, a convite de Marcus Vinicius, para organizar uma chapa para
concorrer às eleições do Conselho Federal de Psicologia. Montamos então a chapa “Um
Conselho Para Cuidar da Profissão”, embrião do movimento “Pra Cuidar da Profissão”. A
política traçada por Marcus, que recebia então nosso apoio e adesão, apresentava uma
proposta de fazer acontecer as decisões de 1994, criando um novo Conselho de Psicologia,
capaz de transformar seu papel na sociedade, suas atividades, sua inserção social e suas
relações com o Estado brasileiro. O CFP deixava de ser uma entidade corporativa, para ser uma
entidade da sociedade brasileira que faz o diálogo entre as necessidades sociais e as
possibilidades de uma profissão.
Estivemos no Sistema Conselhos de 1997 (janeiro) a dezembro de 2007, sendo que neste
período presidi o Conselho Regional de São Paulo de 2001 a 2004. Cabe aqui contar que
quando assumimos em 1997 o CFP, Marcus era o primeiro suplente na chapa; quando me
afastei do CFP, onde estava presidente, para me candidatar em São Paulo, Marcus ocupou a
presidência do CFP, daí a brincadeira “de suplente a presidente” no título do livro que nunca
pode ser escrito.
Mas escrevemos muitas histórias nestes anos de CFP. A capacidade de Marcus fazer análises
sobre a conjuntura, retirando daí tarefas, era algo surpreendente. Entretanto, Marcus, ao
mesmo tempo em que analisava, era capaz de ouvir sugestões e propostas de todo aquele
conjunto da plenária e tirávamos dali coisas incríveis, que serviam ao momento, respondiam
por demandas e interesses da profissão e da categoria. Marcus não gostava que se nomeasse
uma proposta como sendo dele, porque jurava ele que não era: Ana Bock, ouço e penso com
os demais. Talvez minha capacidade seja esta: de ouvir muito o que os outros dizem. E
realmente assim me parecia. Toda proposta de Marcus continha idéias, pensamentos,
julgamentos e opiniões daqueles que o cercavam, mas a forma final dada por ele sempre nos
surpreendia. Assim, criamos as Comissões de Direitos Humanos nos Conselhos de Psicologia;
criamos prêmios para estimular a produção do pensamento dos Direitos Humanos na
Psicologia; fizemos um julgamento brilhante, surpreendente e forte dos hospitais psiquiátricos
no auditório do Senado Federal; plantamos caixões e cruzes em todo jardim em frente ao
Ministério da Justiça, em Brasília, para protestar pelas mortes (extermínio) de jovens e
crianças nas periferias das grandes cidades; fizemos manifestações na porta de várias
embaixadas para protestar sobre o desrespeito aos Direitos Humanos; fizemos caravanas para
visitar e denunciar abusos em instituições de cuidados, como hospitais psiquiátricos, FEBEM e
outras. Reunimos entidades de Psicologia do Mercosul e assinamos três acordos com estas
entidades, assumindo princípios de ética profissional, de formação e de trabalho, oferecendo
nosso avanço ao Itamaraty. Estivemos, a partir do Governo Lula, em “todos” os gabinetes de
ministros e assessores, deputados e senadores, para expressar o pensamento, a contribuição e
as possibilidades de leitura da Psicologia. Construímos o Banco Social de Serviços, o CREPOP,
os Seminários de Políticas Públicas, o Congresso Norte e Nordeste de Psicologia. Criamos a
BVS-Psi, a Mostra de Práticas em Psicologia: Psicologia e Compromisso Social, o Congresso
Ciência e Profissão, o Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira, a União Latinoamericana
de Entidades de Psicologia. Fizemos a passeata dos psicólogos do trânsito e
pressionamos pela derrubada do veto de FHC ao item da avaliação psicológica para habilitação
como motorista; subimos no caminhão de som para impedir a assinatura da primeira versão
das Diretrizes Curriculares pelo MEC; regulamentamos a profissão, criando a resolução da
orientação sexual, do preconceito racial, dos prontuários, dos documentos escritos, do registro
de especialistas. Criamos os programas produzidos com a TV Futura para divulgar a leitura da
psicologia (série Não é o que parece). Criamos as auditorias regulares e obrigatórias em todos
os CRPs, como forma de garantir o uso criterioso e respeitoso do dinheiro arrecadado junto à
categoria. Qualificamos o atendimento ao público nos CRPs. Comprometemo-nos com a
seriedade e o rigor necessários à administração de uma autarquia do Estado. Éramos muitos
companheirinhos neste Brasil todo; em cada Conselho Regional; em cada pedaço da profissão.
Tornamos-nos muito amigos. Marcus, Marcos Ferreira, Chico Viana, Odair, Lumena, Graça,
Elisa, Tina, Silvio, Ia, Edna, Bronia e eu . E, ao finalizarmos nossas atividades no CFP, criamos
juntos o Instituto Silvia Lane. Silvia, ainda viva, recebeu a notícia do Instituto com modéstia e
humildade. O Instituto possibilitou que continuássemos a trabalhar pela transformação da
psicologia: queríamos uma profissão e uma ciência capaz de se vincular às questões sociais
urgentes do país; queríamos e queremos uma psicologia comprometida com o exercício crítico
capaz de produzir este vínculo. Trabalhamos com Marcus até o fim. Ele produziu ainda
conosco a idéia do Simpósio Nacional de Psicologia e Compromisso Social, escrevendo em um
guardanapo na mesa do restaurante a temática do evento e seus embaraços. Isto era
dezembro de 2015.
Marcus era um grande amigo. Foi importante no desenvolvimento de meu trabalho à frente
do CFP. Impediu que a papelada e a burocracia tomassem o lugar da reflexão política. Acolheu
meu estilo apaziguador e alegre, valorizando as relações afetivas que construíamos no
trabalho. Só não conseguiu, naqueles anos todos, se lembrar do meu aniversário. Quando
reclamei firme, da primeira vez, ele me respondeu com uma poesia.
Requiem por uma amizade em perigo
Marcus Vinicius/ 10 de setembro de 1995
Eu sou assim mesmo. Dessimétrico.
Entre a intenção e o gesto,
Uma avenida larga de vida
me leva…
E olhando para trás,
te aceno um tanto encabulado
pela tibieza que me faz flácido,
e no descuido desaponta os amigos
eu não tenho desculpas, justificativas,
motivos eu até tenho.
Não para fazer o que eu não fazendo, faço.
Mas pra mil vezes, fazer o que não fiz.
E então pergunto: o que me resta fazer agora
senão o fiz quando o quis?
A Inês já é morta?
estarei definitivamente condenado
por este jeito danado
que nem eu mesmo escolhi?
Se sobrevivem amigos devo-lhes
uma imerecida generosidade
dos cuidados que não tive,
contas que nunca poderei pagar.
Se o prego do teu coração botequim
ainda tiver um espaço assim pequenino
mesmo com tanta conta que você sabe
que nunca vou pagar
mais uma vez eu tropeço,
mais uma vez eu te peço
arranje mais um lugarzinho para mim.
Pendure mais essa,
finja de novo
que acredita que eu tomo jeito
que eu vire gente direita
que nunca mais vou te decepcionar…
não deixe morrer, não deixe matar
insista, persista, sou devedor confesso…
você nada tem a ganhar,
mas estou em suas mãos; não me expulse do seu coração
não deixe a minha estranha amizade cair no chão…
e suplicante te peço: bota mais uma, Ana!
bote mais uma. Por favor, mais uma só
Nestes anos de amizade e trabalho vivemos juntos muitas histórias engraçadas que vão se
perder, traídos que somos pela memória: o dente que quebrou no meio de uma conferência
para centenas de pessoas; o impedimento de entrar no Uruguai porque sua carteira de
identidade possuía uma foto com apenas metade do rosto; nosso show de dança no I CNP; a
retenção no aeroporto do Peru porque transportávamos um vídeo de título “Não é o que
parece”. Mas o trabalho feito para a Psicologia ficará registrado e os amigos próximos e eu
poderemos ter certeza de um caminho percorrido juntos que permitiu que nossos sonhos se
tornassem realidade. Marcus foi um construtor de utopias. Obrigada Marcus.
E com a ajuda de Pena Branca e Xavantinho termino esta história dos meus dias com Marcus
Vinicius:
A tua saudade corta
Como aço de navaia
O coração fica aflito
Bate uma, a outra faia
Os óio se enche d`água
Que até a vista se atrapaia, ai, ai, ai