Ele não apenas falava, mas fazia!
Uma das coisas que mais me provocam e mais me surpreendem à medida que tento entender a
mensagem, ou o legado, de alguém é a surpresa e a descoberta de que aquilo que realmente
permanece, o essencial naquilo que alguém quer comunicar com palavras, com escritos, com suas
falas, não é o suposto conteúdo do que queremos expressar, mas é a maneira, a didática, aquilo
que Moscovici identificou, em seu livro Psicologia das Minorias Ativas, através de suas pesquisas
sobre o que de fato leva à mudança, à transformação: é o estilo das pessoas. E é exatamente essa
a grande intuição de Paulo Freire: para ele Cristo era o melhor exemplo de pedagogo, pois ele não
dizia a verdade, mas era a verdade; não ensinava o caminho, mas era o caminho. É por isso que
dos mais de 30 livros de Paulo Freire, 13 trazem no título a palavra “pedagogia”, que é a maneira
de educar, o estilo, a prática, que carrega o conteúdo e a mensagem.
Pois é isso que gostaria de realçar e de testemunhar em Marcus Matraga: o que fica dele, para
mim e tenho certeza que para os que com ele conviveram, não é necessariamente o que ele disse,
ou escreveu, mas o que ele praticou, o que ele fez. Sua maneira de ser, seu estilo.
Gostaria de mostrar isso com alguns fatos bem concretos. Nos oito anos em que trabalhamos
juntos na Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, o que mais chocava
os psicólogos e os que vinham para os encontros e reuniões era sempre uma atividade, uma
prática, quase que um exercício absolutamente novo e extremamente provocativo que foi
instituído: em todo encontro e reunião fazia parte indispensável da agenda uma manhã, ou uma
tarde, que surpreendia e chocava os participantes: a realização de uma ação concreta. Por
exemplo: tomava-se um ônibus e nos deslocávamos para a frente das embaixadas de algum país
que patrocinava práticas que ofendiam e feriam os direitos humanos. Outra vez foi chocante e
comovente visitar a instituição “prisão” do Distrito Federal que recolhia jovens adolescentes, às
centenas, que eram jogados em cubículos fechados, testemunhando cenas escandalosas: gente
sofrida, sem terem sido nem ouvidos, parecendo pássaros encarcerados, muitos sem saber porque
lá estavam! E os psicólogos/as fazendo reuniões sobre Ética e Direitos Humanos! Ou ainda a
pesquisa feita nos hospitais psiquiátricos, que levou a uma discussão nacional sobre o tema, com
repercussões concretas nas diferentes políticas públicas. Ou então daquela feita em que, ainda de
madrugada, foram colocados centenas de caixões no gramado da esplanada, em frente ao
Ministério da Justiça, denunciando as centenas de crianças e jovens assassinados! Era de se ver o
choque sofrido por muitos dos psicólogos/as que vinham aos encontros e reuniões confrontados
com práticas tão inusitadas, mas terrivelmente reais.
Pois esse é o Marcus Madruga que gostaria de trazer à cena. Não me espantei com sua morte.
Para mim foi apenas mais uma ação de coerência de sua vida, talvez seu ponto mais alto. Ele não
podia aceitar injustiças e desrespeito aos seres humanos, fosse quem fosse, a começar pelos mais
impotentes, mais sofridos, os que mais necessitavam de recursos.
Minha oração e meu desejo é que ele, com seu exemplo e sua prática, leve a Psicologia sempre
mais a ligar as inúmeras falas, encontros e discursos a práticas concretas, que são as que
realmente educam e ensinam. Marcus nos ajuda a não nos transformarmos em burocratas da
palavra, puro som oco, e não Palavração (Freire). O maior ensinamento de Marcus à Psicologia do
Brasil foi sua vida e seu último e irrefutável testemunho: ninguém ama mais do que aquele que é
capaz de dar a própria vida. A Psicologia do Brasil deve se orgulhar de ter tido em suas fileiras e
fazer memória fecunda a esse profeta e mártir.
Pedrinho A. Guareschi UFRGS