Relutei em escrever algo sobre Marcus Matraga. Incrédula desde a notícia da morte, a cabeça poucas vezes se ocupou de outra coisa que não fosse ele. Evitei acessar o facebook para não me deparar com os inúmeros relatos de amigas e amigos colegas de profissão, desconhecidos, entidades públicas – quem quer que seja – sobre o impactante encontro com Marcus Vinicius, impossível que fosse de outra maneira. Para não me deparar de novo com as lágrimas que eu pensava ter minimamente controlado.
Havia decidido não escrever nada sobre porque qualquer texto diria muito pouco sobre a grandeza dele, tão multifacetado; porque queria mesmo era encontrar todos esses amigos e falar da dor comum apenas em abraços fortes e longos, em choros compartilhados. Quando eu soube que não mais o veria, fui tomada por um desejo imenso de poder revê-lo uma última vez, com aquela barba enorme e cabelos compridos, a barriga do tamanho do mundo abrindo os botões da camisa, que com ousadia até demais apontei algumas vezes: ?Marcus, você tá é gordo, hein?? Ver pra acreditar, talvez, que aquele seria um adeus.
Ele era psicólogo, militante, tinha sangue nos olhos, eu sei. Seu jeitão era marcante, eu sei. Mas o Marcus que eu me lembro era o MV querido, de muita ternura. O MV poeta. Quando alguém me falava do jeitão dele (que eu nem consigo nomear de outra maneira, porque seriam adjetivos por demais) eu rebatia mentalmente com a lembrança de um encontro no GT Eduardo Araújo, quando eu era segundo semestre e já tinha vivido a experiência brilhante e temerosa de tê-lo como professor. Ele havia sido convidado para uma ?capacitação? do grupo, que vivia suas dificuldades antimanicomiais, e eu que o havia conhecido entre gritos e o rosto vermelho de fúria apaixonada pelas suas convicções, fui surpreendida por um Marcus de uma sensibilidade sem tamanho no trato com estudantes verdinhos na luta, na clínica, no encontro com a loucura. Me lembro dele muito emocionado falando da estreita relação com o Eduardo que nomeia o GT e cedo conheci o coração imenso que habitava ali.
Quando penso que ele não está mais conosco, eu sei o quanto perderam os movimentos, as minorias, a psicologia; eu reconheço. Mas me detenho nos abraços que não vou ter mais como quando eu o encontrava em qualquer lugar, entre o sorriso e o interesse genuíno na pergunta ?E então, como vai você??; nos “causos” que sempre tinha pra contar, na ironia fina e nas palavras sempre necessárias; nas brincadeiras e conselhos de patrono – como aqueles de um discurso inesquecível que ele fez na minha formatura, dizendo como se sentia orgulhoso que aquelas recém psicólogas tivessem escolhido como símbolo do irmão mais velho, a referência, aquele que [com ênfase, dito pausadamente e com um sorriso de canto de boca] ?não havia facilitado em nada a vida de vocês?.
Lembro do sentimento de alívio quando ele sobreviveu ao acidente que sofreu e que o deixou debilitado por um bom tempo, mancando por São Lázaro com uma bengala. “Já pensou, se Marcus morre?” – confessávamos o temor entre reuniões do DAPsi. Era uma sensação de alívio por ter escapado de um mundo sem Marcus.
Não escapamos, dessa vez.
Sei que a semente lançada germinou e que a voz dele ecoou e não poderá ser calada. Mas a voz e as palavras deles eram únicas, eram o que eu queria ouvir ainda por muito tempo e em muitos lugares.
Vou somar com vocês e dizer #MarcusViniciusPresente
Também quero que o crime seja apurado. Quero honrar a vida e o esforço contínuo de Marcus Vinicius, militante e docente, sendo a melhor psicóloga que eu puder ser, nos termos que ele considerava. Apesar disso, por enquanto, não consigo ver um crime ou pensar em fortalecer luta nenhuma. Perdoem. A ausência dele é maior.
Sou só dor e saudade.