Marcus Vinicius – a firmeza no sustentar de um coração bom
Marta Cerqueira Melo
-Então você é o famoso Marcus Vinicius…
– Não acredite em tudo o que falam a meu respeito.
Marcus Vinícius, MV, Marcus Matraga, pai, filho, meu amor… Vários serão os nomes e as formas
carinhosas que manteremos em nossas memórias de chamá-lo e para seguirmos ao seu lado. Mas se
em vida muitos foram os seus nomes, a sua morte nos vem reforçar o fio de coerência que costura,
que reúne, que entrelaça todo o seu vivido.
Não falo aqui das suas causas e do vigor com que as defendia; da sua aposta na coletividade como
força motriz da criação social; ou da sua admirável coragem. Falo, antes, daquilo que lhe brotava do
coração; da centelha de vida que vivia no Marcus e que o guiava em cada relação, em cada palavra
dita, em cada luta empreendida.
A vida tratou de nos aproximar após o acidente de moto que sofreu no ano de 2011, ocasião em que
quase morreu. Por isso mesmo, falava ele do “plus” que lhe fora concedido em matéria de vida após
o acidente. O tempo em que estive em sua companhia foi marcado, assim, pela sua aposentadoria
da Universidade e desligamento do Programa de Pós-graduação; pela escolha de um novo lugar para
viver – o Sítio Lanterna dos Afogados; pela progressiva redução da sua agenda de viagens a trabalho;
e pelo bonito processo de reinvenção de si neste outro momento de vida. Nos seus últimos tempos
de vida vinha se dedicando a tarefas, talvez, mais simples – sobretudo no que diz respeito ao
aprofundamento do conhecimento sobre a sua humanidade.
A beleza e a força da vida que viviam neste homem são as mesmas que ele ousou, por vezes,
despertar em nós. Sabemos, todas e todos aqueles que não fomos indiferentes à sua presença, que
essa era a qualidade que o definia como professor, como militante, como amigo, como pai, como
companheiro… O chamado que o Marcus nos insistia em fazer era um chamado à Vida. Mas à vida
mesmo e não àquilo que pensávamos ou que gostaríamos que a vida fosse. À vida, com as suas
contradições, com os seus véus de ilusão, com as suas lógicas perversas de manutenção de uma
ordem desigual e injusta. O seu convite era para que, juntxs, seguíssemos rumo à construção de uma
sociedade menos desigual e mais justa. Um convite para que suportássemos as dores do auto-parto;
para buscarmos a clareza de princípios ético-políticos capazes de conferir a justa medida da
individualidade nos nossos caminhos; e para escolhermos, no nosso front cotidiano, o lado daqueles
e daquelas historicamente violentadxs e injustiçadxs na sociedade em que vivemos.
A figura humana que enxergo no Marcus e à qual me apego para falar neste momento, assim, é a de
um homem que se muniu das palavras, do afeto e do cuidado, amparado por um admirável senso
ético e de justiça, no seu trato com outros humanos; um homem que buscava estar inteiro nas suas
relações, comprometido com a dimensão do humano presente em cada tema ou questão a que se
dedicou: seja o da loucura e as lógicas de aprisionamento a ela associadas; seja o das drogas e as
ainda tão controversas relações que mantêm com a violência; o da desigualdade social e o
engendramento das dominações; de uma Psicologia espacialmente situada, que esteja aberta ao
enfrentamento das questões sociais que marcam a construção dos sujeitos de que se coloca a
serviço…
No limite da sua humanidade, ou como ele dizia, “sem fraude e nem favor”; com a sua forma dura,
por vezes doce e, de maneira geral, difícil de ser nas relações, a figura humana do Marcus a que me
apego para falar neste momento é a de um homem que até no seu momento final não hesitou em
colocar o seu corpo a serviço do outro. Pessoas como o Marcus nos fazem um chamado para
abandonarmos o sono das velhas rotinas; convocam-nos a assumir o compromisso diário com a
justiça e a ética nos nossos modos de sentir e fazer a vida… Pessoas como o Marcus insistem em nos
falar sempre mais fundo ao coração e, por isso mesmo, são pessoas especiais no mundo em que
vivemos.
Por mim, o Marcus será sempre lembrado como alguém com um profundo senso de
responsabilidade com o presente; como alguém que buscava estar sempre consciente nas relações;
e como alguém que encontrava na ética e na justiça trilhas seguras para se guiar no caminho do
cuidado com o outro. E por isso mesmo ele se tem feito em todo esse tempo (e seguirá se fazendo)
presente: ele segue vivo naqueles e naquelas que tiveram os seus caminhos com o dele cruzados sob
a forma da inspiração; como essa “vozinha” firme e sutil que segue nos querendo pessoas vivas e
inteiras na vida, sobretudo em nossa relação com o outro.
Marta Cerqueira Melo