Wilson Senne

matraga homenagens fevereiro 6, 2018

A hora e vez do prof. Marcus Matraga

Nunca vi alguém se identificar tanto com um personagem de Guimarães Rosa a ponto de reclamar para si o apelido: Matraga. Tanto mais por não se tratar de um herói invejável, ao contrário, o Matraga de Rosa é vítima de uma emboscada, no início do conto, e morre de tiro, ao final.

Mas as coincidências param por aí: o personagem Augusto Matraga morreu num duelo em praça pública e cercado por testemunhas, enquanto o prof. Marcus Matraga foi vítima de um tiro na nuca numa estrada deserta, com tudo indicando um covarde crime de mando, sob circunstâncias que ainda estão sendo investigadas (tomara!).

Não se sabe ainda se o assassinato teve motivações políticas; comentou-se desde logo que o prof. Vinicius pudesse estar envolvido como mediador em conflito de terras indígenas. Mas, banalizada como anda a criminalidade, também pode ter sido vitimado por muito menos. De todo modo, a possibilidade de uma tal motivação política, em se tratando do prof. Matraga, tem toda procedência e precisa ser investigada.

Desde que o conheci, logo que chegou na Bahia, em 1990, o prof. Vinicius apresentou-se como alguém que, se tinha pouca bagagem acadêmica (ele ainda estava inscrevendo-se no mestrado), já acumulava, em compensação, um bocado de experiência com a militância política, com forte envolvimento com a reforma sanitária e a luta antimanicomial. Mesmo depois, enquanto consolidou carreira acadêmica com dedicação exclusiva, Vinicius nunca deixou de se vincular intensamente com um “lado de fora” político-institucional e relativo às práticas profissionais da psicologia – com destaque para sua participação nos Conselhos da categoria e junto ao Ministério da Saúde.

Esta foi, creio, sua principal contribuição para a formação em psicologia: a ligação visceral com os temas e problemas do presente histórico, o sentido de um “compromisso” com o social inseparável da atividade crítica, ou melhor, da praxis de uma crítico-clínica – exercício de uma reflexão que era também engajamento político e luta. Além de dezenas de publicações acadêmicas, o prof. Matraga deixou registro ainda mais extenso de sua presença em congressos, seminários, encontros… Falar aos quatro ventos era com ele mesmo. Lembro do prof. Matraga ao microfone em cima de um caminhão de som, em manhã de domingo, liderando uma passeata do Orgulho Louco a caminho do Farol da Barra… Seu ativismo também não dispensava o uso das redes sociais, com média de várias participações diárias durante anos, sobre os assuntos de interesse geral com os quais desde sempre se envolveu ” desigualdade social, políticas públicas, direitos humanos, reforma psiquiátrica, saúde mental, clínica psicossocial…

Com mestrado e doutorado em saúde pública/coletiva, coordenando estudantes em campo com pesquisa sobre “intensificação de cuidados”, à frente de um “Laboratório de Estudos Vinculares”…de muitas maneiras o prof. Marcus Vinicius inscreveu seu nome no amplo movimento do campo da psicologia que, nas últimas décadas, convergiu para o “social” enquanto “profissão da área da saúde”.

Como um dos principais protagonistas deste movimento, sua brutal desaparição, além de deixar muita saudade entre seus parentes e amigos, representa uma perda irreparável para o campo da psicologia, e, particularmente, para a formação em psicologia, com a qual o prof. Vinicius, mesmo aposentado, continuava colaborando, participando de eventos com profissionais e estudantes, animando encontros e congressos com sua presença sempre inflamada e estimulante.